Sobre relacionamentos, contato e a difícil arte de permanecer inteiro
Relacionamentos mexem conosco. Aproximam, aquecem, desorganizam. Estar com alguém, verdadeiramente, é permitir que o outro nos afete, e também se deixar aparecer. Mas às vezes, no esforço de sustentar um vínculo, vamos nos afastando de nós mesmos. Silenciamos o incômodo, apagamos partes, torcemos desejos. E quando vemos, já estamos longe de casa: falamos sim querendo dizer não, evitamos conflitos para manter a paz, aceitamos pequenas violências em nome do amor.
Essa perda de si é sutil, mas profunda. Ela não começa com grandes rupturas, mas com concessões silenciosas, gestos interrompidos, sentimentos não ditos. Na Gestalt-terapia, chamamos isso de interrupções no ciclo do contato, mecanismos como a confluência (quando nos fundimos ao outro), a introjeção (quando engolimos valores sem digerir), e a despersonalização do próprio sentir.
A questão central aqui não é amar demais. É esquecer de si para tentar sustentar um amor. E a conta chega: corpo cansado, humor instável, crises de identidade, sensação de sufoco, um vazio que não sabemos explicar.
Talvez você já tenha se sentido assim, como se estivesse se transformando em alguém que não reconhece, só para caber na relação. E não é que o outro exija isso, necessariamente. Muitas vezes somos nós que, por medo de perder, de desagradar, de repetir antigas dores, nos colocamos nesse lugar. Aprendemos que amar é ceder sempre. Que preservar um vínculo é mais importante do que preservar a si mesmo.
Na clínica, escuto histórias assim com frequência. Como a de Clara — nome fictício — que chegou à terapia sem conseguir explicar o que sentia. Dizia estar num relacionamento estável, com alguém que a tratava bem. Mas algo pesava. Ao longo dos encontros, foi percebendo que, aos poucos, foi se moldando ao parceiro: passou a gostar das mesmas músicas, deixou de sair com amigas, evitava conversar sobre temas que o incomodavam. “Não é que ele me proíba”, dizia, “é que eu mesma vou evitando para não criar problema”.
A dor de Clara não era sobre o outro, mas sobre si. Sobre ter perdido o fio da própria voz. O processo terapêutico foi, então, um caminho de volta. Um espaço para recuperar o contato interrompido com seus sentimentos, seus limites, seus desejos esquecidos.
Porque amar, na perspectiva da Gestalt, não é se fundir, mas se encontrar. Não é se abandonar, mas se oferecer inteiro. É no contato verdadeiro, onde cada um pode ser quem é, que a relação ganha potência. Isso exige coragem: a de se mostrar, de se escutar, de arriscar o conflito, de sustentar a diferença.
E se você se reconhece nessa experiência de se perder para não perder o outro, talvez seja hora de se perguntar: o que estou calando em mim para manter essa relação viva? E o que acontece com o vínculo quando eu volto a me escutar?
Na terapia, é possível explorar essas perguntas com cuidado, sem pressa, com espaço para sentir. É um convite a recuperar o fio da própria história. A reaprender a estar com o outro sem deixar de estar consigo.