A Viagem de Chihiro não é apenas um conto sobre crescer. É um mergulho no limbo entre o que fomos e o que ainda não sabemos ser. Lançado em 20 de julho de 2001, o filme de Hayao Miyazaki é, há mais de duas décadas, uma narrativa que fala sobre transições, internas, afetivas, identitárias. E talvez por isso ainda ecoe em tanta gente.
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TogglePor fora, parece uma animação para crianças. Por dentro, é uma travessia profunda, emocional, existencial, psicológica. É, talvez, o filme mais simbólico do Estúdio Ghibli, e um dos mais poderosos contos modernos sobre amadurecimento e identidade já criados.
Uma jornada simbólica e interior
Em A Viagem de Chihiro, tudo começa com um nome esquecido. Mas a travessia que se desenrola é muito maior do que uma simples jornada física: é uma descida ao mundo interno, onde cada figura representa uma parte da psique, um aspecto do crescimento, um dilema existencial. E, nessa travessia, Chihiro encontra, e enfrenta, aquilo que muitos de nós passamos a vida tentando evitar: a perda de controle, a perda de identidade, a necessidade de confiar.
Contos, individuação e crescimento
Na psicologia, especialmente na abordagem junguiana, esse percurso seria o que chamamos de individuação: o processo de se tornar quem se é, integrando luz e sombra, desejo e medo, criança e adulto. Bruno Bettelheim, em A Psicanálise dos Contos de Fadas, lembra que os contos simbólicos não foram feitos para ensinar lições morais, mas para oferecer modelos emocionais de desenvolvimento. Eles falam, em imagens, o que a psique ainda não sabe dizer em palavras. A Viagem de Chihiro é, nesse sentido, um conto moderno, não com moral, mas com travessia.
O túnel e o início da travessia
Chihiro começa sua jornada apática, entediada, irritada com a mudança para uma nova cidade. Em poucos minutos de filme, seus pais são transformados em porcos e ela se vê sozinha em um mundo desconhecido, mágico, repleto de perigos e figuras ambíguas. Como em toda boa narrativa mitopoética, a protagonista é arrancada do que conhece e lançada no caos.
É assim que tudo começa: com um túnel.
Túneis são passagens. Conexões entre dois pontos. Mas também são fronteiras, entre realidades, fases da vida, versões de si. Do outro lado do túnel, os pais viram porcos, os nomes se dissolvem, o tempo se desfaz. E Chihiro precisa encontrar, nesse mundo de espíritos e rituais estranhos, uma forma de continuar sendo ela mesma. Mesmo sem lembrar exatamente quem é.
Rito de passagem e Jornada do Herói
O que o filme apresenta com delicadeza é, na verdade, uma metáfora profunda: o rito de passagem. Essa é uma estrutura ancestral. Em várias culturas, há momentos simbólicos que marcam o fim da infância e o início da maturidade, e quase sempre eles envolvem travessias, perdas, provas, isolamento. Chihiro vive tudo isso. Sem preparação. Sem aviso.
A estrutura do filme segue, ainda que sutilmente, o que Joseph Campbell chamaria de Jornada do Herói, mas invertida, despojada de batalhas épicas. A aventura aqui é silenciosa, íntima, cheia de estranhezas. Uma menina entra em um mundo desconhecido, perde seus pais, esquece seu nome e precisa lembrar quem é para voltar. Parece simples. Mas está tudo aí: o chamado à aventura, a travessia do limiar, os testes, os aliados, a caverna mais profunda e, enfim, o retorno com transformação.
Segundo Campbell, todo herói parte de um mundo conhecido e é lançado em território de mistério e desafio. A volta só acontece quando algo dentro dele se transforma, e não há retorno verdadeiro se a identidade não mudar. No caso de Chihiro, essa transformação é feita através do esquecimento e da memória. Perder o nome é perder o contato com a própria essência. Lembrá-lo é o gesto simbólico de quem retorna a si mesmo.
Contato, vazio e presença
Na Gestalt-Terapia, falamos da importância do “contato”. Esse lugar onde nos reconhecemos no mundo e também nos perdemos nele. Chihiro se vê deslocada de todos os referenciais: perde o nome, os pais, o corpo seguro da infância. Mas é nesse vazio que ela começa a construir algo novo. A experiência a molda. Não porque ela quer mudar, mas porque não há outro caminho.
E há silêncio. Muito silêncio.
Chihiro não é uma heroína barulhenta. Ela não faz discursos. Não desafia monstros com espadas. Suas conquistas são pequenas e delicadas: ajudar alguém, lembrar um nome, confiar em um espírito ferido. E talvez seja isso que torne sua jornada tão universal: ela nos ensina que crescer não é sobre se impor, mas sobre se mover com cuidado. Com escuta. Com presença.
Nome, identidade e opressão
O fato de seu nome ser roubado (ela deixa de ser Chihiro e passa a se chamar Sen) é uma metáfora poderosa sobre a perda da identidade em contextos opressores, como novos ambientes, sistemas rígidos, ou até mesmo famílias que não reconhecem a subjetividade da criança. Recuperar o nome, ao fim, é mais do que um gesto simbólico. É um retorno a si mesma.
A mentira interna e os pequenos gestos
Autores da escrita criativa também ajudam a iluminar esse percurso. Em Save the Cat, Blake Snyder propõe que todo protagonista começa com uma “falsa crença sobre si mesmo”, algo que precisa ser desmontado ao longo da história. Em The Science of Storytelling, Will Storr chama essa crença de “mentira interna”: a narrativa que sustenta a identidade do personagem, mas que já não lhe serve mais. A jornada consiste, então, em confrontar essa mentira e encontrar uma nova forma de ser.
Chihiro, no início, acredita que não é capaz. Que é frágil. Que não pertence. Essa crença é desafiada continuamente: pelos perigos, pelos vínculos inesperados, pelas escolhas difíceis. Não há um grande momento de vitória. Há um somatório de pequenos gestos de coragem, até que, sem perceber, ela já não é mais a mesma.
Ajustes criativos e amadurecimento
É também um filme sobre ajustes criativos, no sentido mais gestaltista possível: formas de se adaptar ao meio que podem ser funcionais em um momento, mas também limitar a expressão do self. Chihiro aprende a trabalhar, a negociar, a resistir. Mas não se torna cínica, nem perde a sensibilidade. Ela cresce sem endurecer.
A estética do filme, com suas cores suaves, sua trilha delicada e seus silêncios simbólicos, nos convida a um outro tempo, o tempo interno. Nada é acelerado. Nada é forçado. É como se o filme dissesse: amadurecer leva tempo. Enxergar o outro também.
Críticas sociais sob a superfície
Ao mesmo tempo, há críticas sociais profundas por trás da magia: o consumismo desenfreado, a ganância que transforma pessoas em monstros, o desprezo à natureza, a burocracia que rouba os nomes. Mas tudo é dito com poesia, e não com panfleto.
O Sem-Rosto: carência e contato
E há também o Sem-Rosto. Aquela figura silenciosa, simbólica, que absorve o que está à sua volta. Um personagem que parece representar o vazio afetivo, e como ele pode se tornar destrutivo quando tentamos preenchê-lo com o que for.
Na clínica, encontramos esse movimento. Pessoas que buscam amor oferecendo o que têm, mas sem saber quem são. Que confundem vínculo com fusão. Que tentam comprar afeto porque nunca foram vistas. O Sem-Rosto, nesse sentido, é a sombra da carência não elaborada. Mas também é aquele que, quando acolhido com firmeza, pode se reorganizar.
Chihiro o escuta. Não se deixa enganar, mas tampouco o rejeita. Ela estabelece um limite, algo que na Gestalt-Terapia chamamos de contato com fronteira, e ao fazer isso, ajuda o Sem-Rosto a encontrar outra forma de existir. Não como ameaça, mas como companhia.
Yubaba e o arquétipo do controle
Yubaba, por outro lado, é o poder que controla. A bruxa que rouba nomes e oferece contratos. Ela representa a estrutura, o sistema que engole a identidade e oferece estabilidade em troca de submissão.
Sob uma lente simbólica, Yubaba é o ego inflado, o arquétipo do controle absoluto, da adultização precoce. Ela oferece segurança, mas ao custo de liberdade. E, como muitas figuras parentais simbólicas, ela não é apenas vilã: é também quem ensina.
Haku: vínculo e memória
E há Haku.
Silencioso, ambíguo, protetor e vulnerável. Haku é o espírito do rio, e, mais tarde, descobrimos que ele foi o rio que salvou Chihiro quando ela era pequena. Ele representa o vínculo primitivo, o inconsciente que guarda memórias anteriores à linguagem.
Quando Chihiro se lembra do nome de Haku, ela não apenas o liberta. Ela reafirma o próprio poder de lembrar, de reconhecer, de nomear. Em termos simbólicos, ela recupera a ponte entre a consciência e o inconsciente, entre o presente e o passado, entre a criança que era e a pessoa em quem está se tornando.
A jornada invisível
Essa jornada, então, é feita não apenas de cenários surreais, mas de relações significativas. O Sem-Rosto, Yubaba e Haku não são apenas personagens. São metáforas do que precisamos enfrentar, negociar e lembrar para crescer.
Cada figura com quem Chihiro se conecta não a transforma apenas por fora, mas por dentro. E é aí que a verdadeira jornada acontece. John Truby, em Anatomia da História, diz que a transformação mais poderosa é aquela que acontece “na alma do personagem”. E é exatamente isso que vemos em Chihiro: uma criança assustada que, ao lembrar quem é, não apenas escapa daquele mundo, mas ganha algo que ninguém mais pode dar: uma história própria.
No fim, ela retorna. Seus pais não lembram de nada. O tempo parece não ter passado. Mas ela passou. E isso é suficiente.
Se essa leitura despertou algo em você — uma dúvida, um desejo de mudança ou simplesmente vontade de se escutar com mais presença — saiba que não precisa fazer isso sozinho. A terapia pode ser um espaço seguro para começar a reescrever a sua história, no seu tempo, com acolhimento e escuta. Quando quiser, podemos conversar.